Levantou cedo e perguntou pra patroa se a camisa da seleção estava limpa e passada. “Na gaveta!”, respondeu a nega. Não valia muito essa nega, mas de uma coisa não podia reclamar: a casa, a roupa e os meninos andavam sempre um brinco. Tá certo que de vez em quando tinha de levar uns sopapos pra aprender a obedecer. “Mulher tem que apanhar pra não sair da linha”.
Lá pela hora do almoço, os amigos apareceram. Companheiros de bar, de sinuca, de cerveja e TV em dia de jogo. A nega fez feijoada e serviu um caldinho de feijão pra abrir o apetite. Caipirinha e cerveja ‘a rodo’, pandeiro, timba, pagode: esse ano o Brasil seria campeão.
Depois do almoço, quase três da tarde, Galvão Bueno já dava a escalação: Juninho Pernambucano na armação no lugar de Ronaldinho, e o Gaúcho na frente no posto de Adriano. “Bom!”, diziam uns, “O Parreira tá louco!”, apostavam outros, “Que que é isso?”, gritava alguém lá do fundo. De repente, a nega soltou: “desse jeito, a gente acaba perdendo pra França!”. O tapão voou rápido, não deu nem pra correr. “Cala esse boca, sua nega vadia! Não vê que dá azar falar em perder tão perto do jogo começar?”. Ela virou as costas, o rosto vermelho, ardendo e praguejou baixinho: “pois tomara que perca mesmo!”. Ele ouviu. Tentou pular no pescoço dela, mas alguém segurou. “Some da minha frente, sua vagabunda! Se o Brasil perder eu te mato! Te mato, ouviu?” A nega sumiu no mundo. “Sossega” pra cá, “deixa disso” pra lá, começa o jogo.
Uma lástima. A seleção jogou mal, os franceses arrasaram. Zidane estava com o capeta no corpo, enquanto Ronaldo, Roberto Carlos e Cafu pareciam plantados no campo de tão duros que estavam. “É hoje que eu mato aquela nega!”, dizia ele. Daqui a pouco o gol da França. Henry. Silêncio geral. Depois, o jogo morno e os amigos tentando tirar a idéia de sua cabeça. “Deixa disso, homem, os caras tão jogando muito mal mesmo hoje, ela não teve culpa.”. Não adiantava. Ele estava furioso. No fim do jogo, cada qual com seu cada qual, um a um os amigos foram embora. Ele esperou a nega aparecer. Cochilou no sofá e nada dela.
Dormiu. Manhãzinha, antes das 5, ele já coando café, ela entra pelos fundos. “Desculpa, Zé, não falei por mal...” Ele não respondeu. Ela quis chegar junto, fazer um carinho e ele nada. “Vou preparar tua marmita. Preciso acordar as crianças, tá na hora de ir pra escola”. Nessa hora veio o soco. Forte. Certeiro no meio da boca. Sangrou. O dente da frente saiu vermelho na mão dela, caída que estava no chão da cozinha. “Tua sorte é que eu te amo, nega vagabunda. Dessa vez não vou te matar não, porque a culpa foi do Parreira que demorou muito pra botar o Robinho, mas da próxima...” A nega levantou, jogou o dente no lixo e, feliz da vida com o amor revelado, colocou mais um pedaço de lingüiça na feijoada do seu homem.
(Texto republicado em homenagem ao Dia Internacional da Mulher)
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