Acordou com gosto de sangue na boca.
Quis mover-se, mas estava inerte, pesado; braços e pernas não obedeciam aos comandos cerebrais, ainda que pensasse com vigor nos movimentos. Quando tentou falar, nada ouviu, além do total e irremediável silêncio circundante. Estava morto. Sim, estava morto, pensava, embora o silêncio da voz e a imobilidade do corpo não impedissem o gosto do sangue que lhe escorria do canto da boca.
Fechou os olhos – ou imaginou que fechasse – e tentou lembrar do que havia acontecido na noite anterior: antes das onze, sentiu uma leve tontura; deitou-se no sofá e adormeceu; teve uma noite agitada, se mexeu muito, mas sonhou com o futuro. De alguma maneira, se sentia mais livre e podia sonhar. Depois disso, nada mais. Acordou com gosto de sangue na boca.
Abriu e fechou os olhos novamente, tentou, em vão, mais uma vez, se mover. Teve a sensação de estar com o pescoço molhado e quente. Pensava em voltar a dormir e se livrar do sonho ruim, quando viu claramente a imagem da mulher chorando calada, enquanto ele vertia palavras impregnadas de dor e rancor. Lembrou-se, então, de tudo o que antecedeu à tontura: a tristeza, a dor da moça, o gosto amargo da mágoa, o adeus sem jeito, apressado e, acima de tudo, o som gutural de sua voz ao proferir aquelas palavras.
Já se haviam cortado antes disso. Já se haviam ferido, maltratado, mas ele nunca dissera nada tão fortemente cruel, capaz de destruir a alma de alguém. Nunca dissera algo tão cortante, que lhe deixasse a boca em sangue. Foi, então, que se sentiu agonizante e se arrependeu.
Não quis dizer aquilo, de verdade, não pensava daquela maneira; estava magoado e acabou libertando suas piores palavras, aquelas que se escondiam no canto mais escuro de seu vocabulário. Chegou mesmo a duvidar se as havia dito, mas já era tarde: ambos estavam mortalmente feridos.
A palavra rebenta, quando proferida – e aquelas, como faca, lhe haviam cortado língua, boca, garganta, esôfago, estômago, intestinos. Tudo a seu redor era, agora, silêncio e sangue a escorrer quente e viscoso do canto de sua boca, tingindo de vermelho o forro claro do sofá da sala.
(velhos textos, quando fora do contexto, são uma delícia de se ler.)
24 de jan. de 2008
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Um comentário:
Olá, Lina!
Gostei muito do seu blog, e estou te convidando para visitar o meu:
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um beijo,
Marcelo.
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